Crimes no cenário artístico podem afetar o legado de uma obra
Por Júlia Lourenço
Num encontro entre amigos em 2011, a baiana decoradora de festas Lindy Silva sugeriu colocar um CD de Michael Jackson para tocar. Como fã assídua do cantor, ficou surpresa ao ouvir de um colega que, naquela reunião, não escutariam músicas de pedófilo. A reação de Lindy foi rápida e certeira: jogou uma bebida na cabeça do convidado e acabou com a festa. Hoje, aos 29 anos, ela se arrepende da atitude e afirma ter amadurecido.
Se o legado musical do Rei do Pop foi colocado em xeque em meio às denúncias de abuso sexual sofridas por ele, Lindy garante que a paixão continua a mesma. Para ela, que batizou o filho com o nome do cantor, Michael sempre contribuiu para um mundo melhor:
⁃ Desde a primeira vez que tomei conhecimento das denúncias, não acreditei. Michael sempre teve um coração bom e sempre ajudou muito a todos. Fui à fundo pesquisar sobre todo o processo. Antes, fazia questão de tentar provar de alguma forma que ele não era pedófilo. Já até discuti algumas vezes por conta disso. Depois daquela festa, eu fui chamada de louca pelo meu amigo e até ficamos um tempo sem nos falar. Hoje, deixei de ser fanática pois amadureci como pessoa.


Lindy Silva com tatuagem em homenagem ao ídolo
Por mais que pareçam seres idealizados e endeusados, os artistas de renome mundial e nacional também são passíveis de erros e desvios de caráter. Para Sandra Romão, psicanalista especializada em História da Arte, se o fruto de um artista é a obra produzida por ele, não há outra alternativa: os dois devem caminhar juntos.
⁃ Não tem como separar esses dois lados. Da mesma pessoa que vem uma obra de arte, pode vir uma manifestação de sexualidade inapropriada, violenta, desvirtuada e agressiva. Tudo isso vem do inconsciente e é nele que se encontra todo o ser daquele sujeito. Todos nós somos submetidos a uma certa lei que nos proíbe de fazer o que quisermos. Por isso, algumas pessoas privilegiadas, como os artistas, podem falar através da arte – disse Sandra Romão.
No caso de Michael Jackson e das denúncias de pedofilia, a idealização do artista como semideus perde a sustentação. Há uma quebra do mito e os amantes da obra passam por uma fase de luto. É nisso que acredita Karine Fetti, psicóloga e MBA em comportamento humano. Para ela, a geração atual é mais cuidadosa quando se trata de separar o lado pessoal do artista da arte produzida por ele:
⁃ As redes sociais contribuíram para a humanização dos artistas. Esses canais de comunicação direta entre ídolos e fãs conseguiram aproximar e desfazer um pouco a fantasia da perfeição. Há uma preocupação maior em perceber quem é a pessoa por trás da obra. É uma geração preocupada não só com a atuação, com a música, com o quadro, mas também em conhecer quem é a pessoa que comunica ou produz aquilo. E essa preocupação é consequência dessa proximidade.
PASSADO E PRESENTE
Outros artistas influentes também tiveram o nome manchado ao se envolverem em crimes. Um dos casos menos discutidos é o de Monteiro Lobato. O autor, mais conhecido por obras infantis, é acusado de proferir racismo em alguns de seus livros. O episódio mais divulgado teve início em 2014, quando foi enviado ao Supremo Tribunal Federal um mandato de segurança em que se discutia a retirada do livro “Caçadas de Pedrinho” da lista de leituras obrigatórias em escolas públicas. Segundo o site do STF, o ministro Luiz Fux negou o pedido. Além disso, o lado sombrio do artista veio à tona quando uma carta do escritor à Arthur Neiva, em abril de 1928, se tornou pública. O conteúdo, publicado em 2011 pela revista Bravo!, confirmou o ideal eugenista de Monteiro Lobato ao defender o grupo Ku Klux Klan.
Capa do livro "Caçadas de Pedrinho". Imagem: Livraria Traça
Sobre a obra racista de Lobato, Karine Fetti considera a importância de analisar o contexto social presente na época:
⁃ Quando analisamos uma obra precisamos entender quem era aquele sujeito e em que época ele viveu, quais eram as engrenagens sociais vigentes, quais as regras, condutas e expectativas que permeavam o inconsciente coletivo daquela sociedade. Essa questão é muito forte especialmente na obra produzida por Monteiro Lobato, tem muito da vivência pessoal dele, do momento em que ele se encontrava e dos próprios preconceitos. Nesse caso, não é possível separar o caráter do autor de sua obra porque a obra é um produto de seus sentimentos e emoções.
Segundo a psicóloga, o que vale para o escritor não se adequa perfeitamente à Michael Jackson:
⁃ No caso do Michael, a figura artística, sua forma de cantar e se expressar não trazem características dessa parte da personalidade e conduta que estão sendo denunciadas e questionadas. A obra está “contaminada” com seu caráter por ter sido executada por ele, mas não está - pelo menos não tenho conhecimento - projetado em suas músicas ou apresentações algo da sua conduta inadequada.
Acontece em Hollywood, desde 2017, o movimento MeToo, responsável por denunciar atos de abuso sexual por parte de diretores, atores e produtores de cinema e televisão. Casos como o de Harvey Weinstein, Kevin Spacey e Woody Allen tomaram dimensão mundial. No Brasil, o episódio mais recente foi o de José Mayer, demitido da Rede Globo este ano por assediar uma funcionária da emissora. Para a cientista social Stella Ravalhia, a separação do artista e da obra se torna mais difícil quando há a possibilidade de se colocar no lugar da vítima:
- É muito mais fácil cancelarmos um artista quando a gente consegue se identificar com a dor do outro. No caso do José Mayer, é mais fácil cancelar porque temos uma consciência feminista e nos colocamos no lugar da mulher. Sentimos um pouco na pele. Ele também não era uma grande figura carismática. Ele é uma pessoa famosa, mas o erro é tão grande e absurdo que se torna mais difícil separar o lado pessoal da arte.
O crítico musical Tom Leão acredita que a obra é sempre maior do que quem a cria. Para ele, o boicote não é a melhor forma de censura e jamais deixaria de apreciar as produções de Woody Allen:
- Os filmes continuam bons e sempre serão. Hoje, as pessoas estão mais preocupadas em saber da
vida dos outros do que da obra em si. É quase impossível não ter nada do autor nas obras. A
esquizofrenia de grandes pintores e músicos, nos deram obras incríveis. Mas, não quer dizer que o
cara que escreveu Psicose, Robert Bloch, era um psicopata assassino. É possível imaginar uma
situação, lendo e pesquisando sobre ela. Ou não existiria ficção científica.